Por que os russos são obcecados por câmeras no painel?
Há uma comunidade interessada em vídeos de acidentes.
Hoje, o mundo acompanha a história de um meteoro que
rasgou o céu da Rússia e deixou centenas de pessoas feridas. Há
incontáveis vídeos mostrando o que aconteceu. A maioria deles filmados
com câmeras de qualidade discutível, posicionadas no vidro frontal de
carros. Mas por que tantos russos usam esse tipo de tecnologia em seus
veículos?
Na Rússia todos deveriam ter uma câmera no painel. É
melhor do que deixar um cano de ferro debaixo do banco para se proteger
(embora essa ideia também não seja ruim). As estradas russas são
perigosas, com um baita engarrafamento e enormes valetas, áreas alagadas
e rodovias que atravessam imensos desertos de gelo. E também existem
partes sem lei onde você simplesmente não vai, policiais com tendência
aguda à extorsão e motoristas frustrados que partirão seu carro ao meio
na primeira oportunidade.
As estradas russas são cheias de
psicopatas. É bom não fechar ninguém ou realizar qualquer tipo de
manobra que possa causar alguma inconveniência aos caras de dois metros
de altura e 150 kg que você costuma ver no YouTube saindo dos seus SUVs
já com os punhos fechados. Eles aceleram, te ultrapassam, te bloqueiam
na pista, saltam do carro e correm em direção ao seu veículo. Então você
começa a levar socos na cara porque não subiu os vidros, ou acaba sendo
arrancado do seu carro pois não trancou as portas.
Essas brigas
acontecem o tempo todo e você não pode fazer nada a respeito. Pode
apontar para seu nariz quebrado ou vidros estraçalhados o quanto quiser.
As cortes russas não gostam de acusações verbais. Mas gostam muito de
mandar pessoas para o xadrez por agressão ou destruição da propriedade
alheia se houver provas em vídeo. E é por isso que surgiu recentemente
uma onda de vídeos feitos com câmeras no painel dos carros, mostrando
potenciais agressores se afastando em meio a gritos do tipo “Você está
sendo filmado, filho da p**a! Vou chamar a polícia!”
Filmagens
feitas com câmeras no painel são a única maneira real de provar suas
acusações na corte. Esqueça as testemunhas. Batida e fuga é uma situação
comum e as companhias de seguro são notáveis especialistas em negar
acusações. Seguros que cobrem todos os envolvidos são bem caros e não
são disponíveis para veículos com mais de dez anos – os donos só
conseguem cobertura para as despesas básicas. Envolva-se em um acidente
leve ou grave e pode esperar que a outra parte envolvida minta para a
polícia ou, melhor ainda, bata na sua traseira e fuja logo em seguida.
Como as seguradoras não pagam até que o agressor seja encontrado e
processado, as pessoas recorrem aos vídeos das perseguições que sucedem
os acidentes para pegar os números das placas.
E
de vez em quando um motorista encosta seu carro já batido no carro de
outra pessoa. Costumava ser uma ação coletiva, com os encenadores de
acidentes agindo em grupos. Depois do “acidente”, o “responsável” –
muitas vezes uma inocente velhinha – é encarado por “testemunhas”, sofre
pressão psicológica e é intimidado a pagar dinheiro no local. Desde que
começaram a colocar câmeras no painel, esse tipo de ação não é mais um
negócio lucrativo, e ficou restrito a províncias mais simples, onde
ainda não se colocam câmeras no painel com tanta frequência.
E
ainda, às vezes, alguém pula para baixo do seu carro em um cruzamento,
ficando deitado no asfalto fingindo ser um pedestre ferido, esperando
pelo policial que está convenientemente estacionado por perto. Esse tipo
de extorsão era dramática até o início da Era da Câmera no Painel. Hoje
existem algumas histórias de triunfo, onde a potencial vítima de
extorsão acaba virando o jogo e forçando os atores a pagar uma bela
grana ou serão eles que serão presos por sua pequena atuação. Mas é bom
nem tentar.
Embora aqueles que têm sorte de percorrer as estradas
e ruas com um passaporte americano ou do oeste europeu sofram menos
abusos, a Polícia Rodoviária Russa é famosa no país por sua brutalidade,
corrupção, extorsão e por ter no suborno uma fonte de renda. Câmeras no
painel não vão te proteger de uma extorsão para se livrar de uma multa,
porque você não deveria estar correndo. Mas você estaria um pouco
protegido de bêbados de farda, acusações falsas e propinas sem sentido.
O
outro lado do Velho Oeste russo é a política de conteúdo online,
bastante ineficiente. Aqui, não podemos assistir na internet nada mais
sério do que uma briga de trânsito ou um acidente leve, com um carro
batendo na traseira de outro, já que os censores conseguem tirar do ar
qualquer vídeo com ferimento/is e sem cortes de caminhões tombando,
pessoas sendo feitas em pedacinhos e sedãs voando e explodindo no ar.
Como a televisão lá é sem graça e a censura é rigorosa, os vídeos de
câmeras no painel são bastante populares na Rússia. Não há censura
alguma – drama, comédia, tragédia, terror, suspense e até programas
educativos são misturados em um super-gênero chamado “câmera no painel”.
Pra que ver a luta se você pode ver dois fortões brigando no meio da
rua?
Mas é tudo por diversão e voyeurismo. A comunidade
do LiveJournal Ru CHP reúne todos os acidentes maiores, brigas e mortes.
Estes são seguidos por uma parede de comentários de trolls. Coisas
ruins mesmo. Mas às vezes mostrar um BMW e seu motorista serem
pulverizados por um caminhão enquanto a Internet toda faz piadas é uma
maneira eficiente de educar motoristas. O Ru CHP mantém um backup de
tudo isso em um servidor na Latvia. Enquanto isso, o YouTube vai
deletando os vídeos de brigas na estrada, para que os americanos mais
sensíveis não fiquem traumatizados com pessoas gritando “Eu vou te
matar, veado!” e golpeando uns aos outros com tubos de aço, pés de cabra
e chaves de roda.
Para
entender e navegar melhor por essa comunidade – supondo que você vá
mesmo fazer isso – eis um dicionário para a nuvem de tags do blog. Foram
incluídos erros propositais de ortografia e frases sarcásticas que são
usadas… enquanto pessoas morrem. Ah, o humor russo…
поциент – “Paciente.” O pobre coitado – ou idiota completo – que aparece no vídeo sendo pulverizado, atropelado ou esmagado.
летчик – “Piloto.” O idiota que dirige em alta velocidade e bate o carro no grand finale de um vídeo.
слабоумие и отвага – “Coragem e demência.”
последние секунды жизни – “Últimos segundos de vida.” Vídeos que mostram pessoas antes e depois de acidentes fatais.
кетай как всегда пиздец –
“A China é f**a.” Vídeos da China que mostram acidentes horríveis e
muitas vezes passantes que ignoram os corpos e destroços dos carros.
кирпичи
– “Tijolos” (como em “cagar tijolos”). O audio desses vídeos
normalmente é composto pelo motorista gritando todos os palavrões do
vocabulário russo (aí está algo interessante para conhecer mais a fundo)
a plenos pulmões. Usada em vídeos de finas ou colisões de raspão.
железобетонное очко –
“Ânus de Concreto.” Honraria concedida àqueles que, ao deparar-se com
situações perigosas repentinas como um caminhão enorme vindo a seu
encontro, permanecem calmos, dizendo só um “nossa” ou “caramba” sem
alarde, e desviam de forma eficiente do perigo, mostrando muita
habilidade ao volante. (A gente aqui acha que “bolas de aço” ou algo
assim seria mais adequado…)
наварра – O infame
vídeo que mostrava um Nissan Navarra preto invadindo os trilhos de um
trem e sendo transformado em uma núvem de pequenos estilhaços se tornou a
metáfora para um acidente chocante, intenso e fatal.
E
tem outra coisa que você precisa conhecer: “Os Drifters de
Vladivostok”. Exite uma predileção por vídeos de desastres em
Vladivostok. A frota da cidade portuária no extremo leste é quase
exclusivamente composta de sedãs japoneses com volante à direita. Eles
tem Nissans e Toyotas esportivos disponíveis logo que saem das balsas do
Japão, que não fica muito longe. Como consequência, a população jovem
da cidade tem acesso fácil a muitos carros rápidos, potentes e baratos. A
cidade de Vladivostok é cheia de aclives e vias com pouca visibilidade.
Então você tem garotos que mal tiraram a carteira, armados com carros
japoneses muito potentes e carros usados bem baratos – muitas vezes
equipados com kits nitro. Eles dirigem como loucos a maioria do tempo e
realizam manobras violentas, saindo de traseira de propósito, com os
motores girando no limite. As colinas íngremes, as vias estreitas e mal
cuidadas, e os veículos com volante à direita fazendo drifts em ruas de
mão francesa acabam em acidentes cinematográfic0s – e idiotas. E esse é o
sabor de Vladivostok: o tempero da fumaça dos pneus e o som do plástico
quebrando.
Mas há momentos de humanidade entre os acidentes,
entre os deslizes, as chamas e as brigas. Existem vídeos de câmeras no
painel com finais felizes. Em um acidente na zona urbana, vemos coisa de
20 carros estacionando, os motoristas correndo em direção à cena. E há
os momentos de entendimento, uma espécie de “irmandade da estrada” – um
perdão que só pode ser visto em rodovias longas, normalmente entre
motoristas de caminhão. A razão é simples: quando se está em um trecho
inabitado de quase 500 km de extensão, a ajuda só pode vir de veículos
que passam, não dos serviços de emergência, e as pessoas sabem disso. A
maioria das rotas de longa distância para lá dos Montes Urais é assim.
É
normal que no inverno russo, os carros de passeio saiam da pista
congelada. Imagine um VW Polo solitário, encalhado em uma pilha de neve
na beira da estrada. Imagine-se encostando o carro, salvando o motorista
de esperar horas por um serviço de resgate caríssimo. A camaradagem
entre estranhos, retirando a neve e acenando para uma picape ou trator
rebocar o carro. Os cumprimentos, os “boa viagem!”. Saber que o próximo
pode ser você.
Mas não se esqueça. À parte a gentileza de estranhos, é só você contra o inferno que são os outros na estrada.
FONTE:
MSN